Diário de viagem
A Europa de trem
Merci vielmal, Erich e Tatá! Agora inicia-se a última etapa da nossa viagem: Barcelona. Deixei de propósito para contar só agora nosso próximo destino! Que lugares diferentes, e no entanto, tão geograficamente próximos... As cidades da Suíça onde estivemos são extremamente diferentes da nossa Sampa natal; não grandes demais, confortáveis, bonitas por qualquer ângulo, arrumadas no mínimo detalhe. Barcelona parece ficar num meio-termo; como a nossa cidade, também é enorme, relativamente suja, com uma ou outra pessoinha estressada, mas ao mesmo tempo é mais organizada, mais cosmopolita, cheia de atrações culturais e históricas de primeiríssima ordem. E mais segura.
Das neves alpinas até a capital catalã, fomos de trem. Três trens muito diferentes. Eis a história de cada um.
A base do teleférico de acesso a Bettmeralp é também uma estação de trem. A linha desce rapidamente até Brig, onde pegamos um outro trem: o Cisalpino. Vindo de Milão, ele subiu a encosta norte de Valais através de uma série de viadutos e túneis, ainda mais modernos e chiques que os do caminho de ida. O vagão é elegante (pudera, soube depois que ele foi desenhado por Giorgetto Giugiaro), num estilo moderno-retrô, bem espaçoso e confortável, mas a Drídri logo ficou mareada, pois em todo o caminho até Thun o trem fazia unicamente curvas, inclinando incessantemente para os lados. Para piorar, havia um fumante escondido em nosso vagão, e ficamos revoltados pela falta de qualquer atitude dos funcionários da ferrovia. Aliás, em todo lugar onde estivemos na Europa era possível achar um fumante ilegal empestiando algum lugar público sem ventilação. Só os aviões são respeitados, aparentemente.
Em Berna, bastou mudar de plataforma e chegou com pontualidade suíça o Trem-Hotel Elipsos para Barcelona! Com o ingresso comprado antecipadamente desde São Paulo, bastou achar o vagão certo, apresentar os documentos e entrar na cabine. Uma cabine minúscula, mas com banheiro privativo (onde tomamos banhos quentinhos e reconfortantes após um longo dia de exercícios) e um assento duplo que foi magicamente transformado num beliche enquanto jantávamos no vagão-restaurante ao lado. O maître foi a primeira pessoa com quem falamos castelhano. A Drídri comeu metade (sempre sobra pra mim a outra metade :-) de um prato de peixe com molho vermelho, e eu mandei ver num salmão grelhado. Isso sem contar a salada e a sobremesa, tudo delicioso e incluído na viagem de trem.
Acordei diversas vezes durante a madrugada - o trem sacolejava bastante, e a única posição confortável era deitada - e então aproveitava para espiar pela janela a paisagem noturna, iluminada pela lua cheia. Em todo o território francês, o trem acelerou espantosamente; não devia estar longe de uns 200 km por hora naquela ferrovia impecável, acompanhando o rio Ródano, rumo ao Mediterrâneo, Provença abaixo. Cidades pequenas, com casas e prédios muito velhos, alguns decrépitos, plantações miúdas; montanhas baixas, porém muito escarpadas, do lado de lá do vale. Nem uma pessoa sequer na rua, nenhum carro nas estradas, tudo dormindo. Testemunhei a passagem do trem - sem paradas depois de Genebra - pelas estações de Chambéry, Grenoble, Nîmes e Montpellier. Ao alvorecer, o trem deu um tempo em Perpignan, a primeira cidade da Catalunha do lado francês. Vi o Mediterrâneo repetidamente como um véu escuro ao longe e uma enseada sem ondas rodeada de casas de veraneio e o eventual castelo, tudo com aparência ancestral e idílica. Mas da fronteira em diante, a linha afastou-se da poética costa, revelando colinas, bosques e plantações com casas de fazenda antigas.
O trem passou quase uma hora e meia parado na estação da fronteira - um dos lugares mais feios que já vi, frio e antipático, inalterado desde o tempo da ditadura - e percorreu o resto do caminho a uma velocidade muito menor que na França. Logo depois, eu e a Drídri fomos tomar o café. À direita se viam os picos nevados dos Pirineus (que lamentavelmente não saíram na foto que fiz) e à esquerda, uma extensa área rural e bosques cultivados. Paredes de fundos de casas traziam numerosas pichações anarquistas e outras clamando a independência da Catalunha. A partir de Girona, começaram a se adensar as indústrias ao longo da ferrovia, e ao entrar em Barcelona a paisagem não era muito diferente da dos arredores industriais da Via Dutra ou do ABC em São Paulo.
Então, sem qualquer aviso, o trem entrou num longo túnel subterrâneo sem paradas e estacionou abruptamente na Estació Sants, já no centro da cidade. Chegada de impacto!
"Hi ha un món aqui a baix": os subterrâneos de Barcelona
Os quatro dias restantes da nossa jornada foram gastos na capital da Catalunha, terra de antepassados da Drídri. Ela já havia estado lá, no verão e por apenas dois dias, há muito tempo (quatorze anos!); eu sabia algo da cidade pelos mapas, pela Web e pelo que os amigos me contaram. Chegamos malucos para ver as obras-primas de Gaudí de perto e por dentro.
Compramos bilhetes com os quais poderíamos usar à vontade qualquer transporte da cidade durante os quatro dias da nossa estada. Fomos a toda parte de metrô; afinal, não há um lugar interessante da cidade que não tenha uma estação por perto. Extremamente conveniente.
O metrô da TMB, que é quase 100% subterrâneo, possui uma rede muito extensa e é mais "moderno" que os nossos metrôs em vários aspectos. Os trens mais novos têm vagões cujo interior continua diretamente de um para outro, formando um espaço único, à maneira dos ônibus articulados; setas luminosas dentro do trem indicam para qual lado fica a plataforma na estação seguinte; no mapa da linha sobre a porta, luzes se acendem indicando as estações já percorridas; as plataformas têm televisores e telões que exibem um canal de notícias exclusivo do metrô; no nível da plataforma há muitas máquinas de venda, bancas de jornais e lojas diversas; a sinalização é impecável, tornando impossível errar o caminho; algumas estações têm bloqueios com portas móveis no lugar de catracas; e, para matar a pau, toda plataforma tem cronômetros que informam quantos minutos e segundos faltam para chegar o próximo trem. Dentro do trem, o aviso sonoro vem precedido de uma vinheta musical.
Pelo lado negativo, todas as estações - exceto as do "outro" metrô, da Generalitat (governo autônomo da Catalunha), que tem apenas duas linhas - são construídas com materiais baratos e muito feios, que parecem sujos e gastos mesmo quando novos; praticamente inexiste senso arquitetônico e estético do tipo que vemos no metrô paulistano; há sujeira e pichações à vontade; e todas as construções subterrâneas, passagens e plataformas mais antigas parecem subdimensionadas. Ademais, para chegar à linha 4 (verde) a partir de outras linhas na região central, é preciso caminhar por longuíssimos corredores. Faz falta uma esteira rolante, como aquelas do aeroporto de Schiphol.
Mas a única coisa realmente desagradável do metrô aconteceu quando entramos num vagão com músicos tocando jazz. Muito bons... Fiz uma foto. Terminada a música, um deles veio me pedir algum dinheiro "pela foto". Não achei nada nos bolsos. O sujeito nem disse mais nada: me xingou e empurrou e foi embora! E depois ainda descobri que a foto saiu borrada... Daí em diante, só fotografei mais um desses artistas de rua - um homem-estátua na Rambla - de longe, com o zoom no máximo. Vai saber...
Após o atentado de Madrid na quinta-feira, multidões apreensivas se reuniam em torno das televisões das estações para saberem das últimas notícias. E na sexta-feira, quando a multidão se dirigia ao Passeig de Gràcia [pronúncia: Passétch da Grácia] para o megaprotesto, o condutor do trem avisou que não pararia na estação correspondente, a fim de evitar excesso de aglomeração de gente.
O hotel
Ficamos no Catalonia Atenas, na Avinguda (avenida) Meridiana - um quatro estrelas que teríamos achado ótimo se tivessem terminado a bendita reforma alguns dias antes de chegarmos. Isso mesmo, reforma com o hotel funcionando! Ou quase funcionando, já que os elevadores simplesmente não vinham e o telefone do quarto ficou mudo desde a nossa chegada até a partida. Nossa televisão não funcionava no primeiro dia, e depois de passar a funcionar, mostrava um único canal: uma rede estatal de notícias que só falava do atentado... e por ser do governo, nas poucas vezes em que a cobertura saía do tom lacrimoso e sem direção, era para insistir que os autores da matança eram do ETA, o que acabou custando-lhes caro na eleição do fim de semana.
Aparentemente, o hotel estava inalterado desde os anos 70 e necessitando muito uma garibada. Mas a reforma estava desigual e incompleta; no nosso quarto, o banheiro estava em piores condições que o resto, o papel de parede recém-aplicado queria descolar sozinho e a porta do armário novo trombava no criado-mudo. Lá fora, poeira e barulho de marteladas por todo lado, e o ar condicionado trazia um nauseabundo odor de cigarro de alguma outra parte do hotel. Pela manhã, hóspedes incrivelmente mal-educados conversavam aos berros nos corredores. E mesmo com o cartaz de "não perturbe" pendurado, as camareiras insistiam cegamente em bater à nossa porta. Saudades do La Pergola...
Mas toda vez que voltávamos da rua, estávamos tão exaustos de caminhar e caminhar e caminhar que capotávamos na cama rapidamente, e aí não dava pra ficar pensando muito nos problemas.
A cidade estava cheia de gente de fora, devido a uma megaconvenção no centro de exposições que fica descendo a colina de Montjuïc rumo à Plaça Espanya. Passamos lá no penúltimo dia, e ficamos bestas com a vastidão do evento.
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