Laura vivia há sete anos em seu mundo cor de laranja quando a nova professora chegou trazendo um livro colorido. Sem que ninguém soubesse o motivo, esta jovenzinha vinda da cidade grande achava muito importante que as crianças aprendessem os nomes das cores, e se esmerava em ensinar que o céu era azul, as plantas eram verdes, e o sol era amarelo, mostrando as figuras de seu livro. As crianças da sala de Laura, e depois de toda a escola, assim como os pais e outros parentes dos alunos, todos se espremiam a fim de ver o livro tão diferente da professora, que mostrava um mundo tão estranho e desconhecido. Em Piraporinha, o céu era alaranjado, assim como o sol. As plantas, quando se tinha notícia de alguma, eram de um laranja pálido e terroso, mortas e ressecadas pela falta de água, e todo o resto era também cor de laranja por aquelas bandas: as pessoas, as casas, a terra, a pouca comida que havia, e até a água barrenta. Piraporinha era, então, um desses povoadinhos do meio do sertão, onde nem uma alma viva conhecia coisas que não fossem alaranjadas, explicando-se assim a verdadeira fascinação pelo livro da professorinha recém-chegada.
Depois de duas semanas na escola, até as páginas queridas por todos já tinham se contaminado pela cor local, devido ao pó e ao manuseio por tantas mãos imundas. Laura, desde essa época, passou a sonhar, sempre em ocasiões importantes, com o mundo que a professora jurava existir não muito longe dali: um mundo onde a água que caía fininha do céu trazia visões que seus olhinhos se esforçavam em imaginar. Laura não conseguia se lembrar das imagens do livro que vira na escola, e seguia sonhando com mundos alaranjados, mas que tinham gosto de doce de mocotó, que uma vez sua mãe lhe dera quando era menor, e que sem sombra de dúvidas era a melhor coisa do mundo. Entretanto, as cores não eram a única dificuldade nos sonhos de Laura. Ela sempre acordava na melhor parte deles, por não saber como era a água fininha que precisava cair do céu pra colorir tudo. Decidiu, depois de algum tempo, que a coisa mais importante para ela era conhecer a cidade da professora, pra ver coisas tão diferentes e maravilhosas, e para aprender os nomes das cores.
Anos mais tarde, quando a professora, nessas alturas completamente ensandecida pela falta de água e cor em sua vida, foi finalmente substituída por outra jovem, Laurinha disse ao motorista do caminhão que precisava acompanhar a mulher até sua cidade, e como não tinha nada pra dar em troca pela viagem, concordou em fazer tudo o que o moço gordo e barbudo pedisse, além de levar comida suficiente para se alimentar pelos três dias e três noites que levariam até chegar lá. Dois dias inteiros na estrada mostravam a Laura tudo o que ela já conhecia, e a menina chegou a pensar que a professora tinha sido sempre louca, e que todos tinham apenas imaginado as coisas diferentes no livro e a água fininha que caía lá de cima. Com muita vergonha daquele homem tão grande, ela finalmente decidiu perguntar ao seu Gilmar se ele já tinha visto a tal da água que voava até cair no chão. O homem fechou a cara e disse que o nome daquilo era chuva, e que ela era uma das piores coisas que ele conhecia, pois já tinha trazido muitas desgraças para a sua vida, levando alguns dos seus embora, estragando sua casa tantas e tantas vezes, e apagando os caminhos pelos quais ele precisava levar seu caminhão. Laura pensou que o caminhoneiro não devia ser muito bom da cabeça, oras, onde já se viu alguém não gostar da coisa mais importante do mundo, que é a água?
Depois de algum tempo, seu Gilmar pensou que talvez a garota estivesse só querendo conversar, não tendo mencionado a chuva por querer, e decidiu continuar falando. Perguntou da vida de Laura em Piraporinha, quis saber da história da loucura da professora, e foi também falando de si, seus problemas e parentes, suas andanças e seus quereres. Contou que havia nascido no meio de uma floresta, e que raramente vinha com seu caminhão pra lugares tão longe dos rios. Disse que nunca havia conhecido ninguém que comesse tão pouco e que fosse tão quieta. Narrou da vez em que fora assaltado e quase lhe levaram o caminhão embora. Falou de sua família e do lugar onde morava, contando sobre o dinheiro que estava guardando para saciar sua vontade de conhecer o mar, pois o seu pai fora marinheiro e havia lhe dito que não há coisa melhor e mais bela neste mundo que o mar.
Quando ele por fim parou de tagarelar, Laura disse que não sabia o que eram aquelas palavras estranhas que ele usava, floresta, rios, mar. Gilmar notou os olhos da menina crescerem de tamanho à medida que ele se explicava, contando de sua realidade. A menina disse, bem baixinho, que não conseguia imaginar água correndo de um lado para o outro, nem muitas plantas e árvores (que eram plantas maiores que a gente, conforme ele mesmo falou), nem um mundo inteiro de água salgada que não acabava nunca. A garota decidiu, naquela mesma horinha, que iria deixar a professora em sua cidade e que continuaria com o seu Gilmar, pra onde quer que ele fosse, porque nunca tinha conhecido ninguém tão sabido como ele. Se ela pudesse, queria conhecer o mar, porque, imagine só, se um pouquinho de água já é bom, um mundaréu inteiro dela seria a melhor coisa do mundo, como havia dito o pai do motorista.
Não se sabe exatamente como, mas a verdade é que seu Gilmar também acabou se apegando à menina que se tornava mulher e que parecia desabrochar mais e mais a cada coisa nova que descobria pela viagem. Sem dizer nada, ambos deixaram a professora enlouquecida em seu destino, e seguiram juntos pela estrada. Laura descobria coisas diferentes de tudo o que já havia imaginado, tendo dias melhores do que em seus sonhos. Aprendeu o nome das cores, viu que água não tinha cor, e se banhou num rio, onde a água não corria de um lado pro outro, como havia lhe explicado o homem, mas sim dançava em torno dela. Conheceu plantas e árvores e flores, cada uma de uma cor e de um cheiro diferente. Comeu coisas coloridas e saborosas, quase tão boas como o doce de mocotó, e aprendeu que só podia ser a água que deixava o mundo não só mais belo como também mais cheiroso e saboroso. À noite, antes de dormir, o motorista de caminhão e a moça de Piraporinha compartilhavam não só o jantar e as histórias, mas também os sonhos, onde o principal personagem era um mundo imenso de muitas variações de azul, todinho feito de água, onde a vida era sempre feliz (e, a garota sabia, cheia de cor).
Conta-se que, anos mais tarde, Gilmar e Laura foram vistos em algum lugar do litoral norte. Enquanto ele estava sempre saindo e chegando de viagem com seu caminhão, ela cuidava dos filhos e vendia doce de mocotó pelas vizinhanças, como a mãe de Gilmar lhe ensinara. A criançada dos arredores ficava deslumbrada com o pedaço de doce, e Laurinha acreditava, na verdade, estar vendendo um pedacinho a mais de felicidade para cada um de seus fregueses, já que em seu mundo não havia nada mais capaz de deixar a gente feliz do que o mar e o doce. Um sorriso aflorava por entre seus dentes sempre que pensava nisso, sabendo como era afortunada por ter tudo o que sempre quis: muita água e a possibilidade de deixar crianças com os olhos brilhantes de contentes.
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