21/10/99
Estou indo para Orlando. Que delícia! Estávamos voando sobre terra e nuvens; comecei a ler um livro. Quando voltei a olhar pela janela, percebi estarmos sobrevoando o mar. Que coisa linda o mar! Que praias bonitas eu vi, com águas azuis, turquesas, amarelas até, bem perto da areia. Quilômetros e mais quilômetros de praias. Desertas. Uma ilha, um pouco de chuva, alguns barcos. Incrível ver tudo daqui de cima, desta gaiolinha que é o avião. Vejo algumas cidades, mas principalmente muita água e muito verde. Parece que toda a costa é coberta por mato. Dá vontade de descer até lá e respirar, só pra sentir o cheiro. De peixe, de sal, de chuva e de planta molhada. Aquele cheiro fresquinho impossível de esquecer. Aquele que só de sentir já muda nosso ânimo e nossa vontade de viver. Me pergunto, nessas horas, como é possível ficar ‘imune’ a tudo isso o tempo inteiro. Pensamos em trabalho, ganhar dinheiro, ir às compras, fazer exercícios, visitar parentes, escovar os dentes, não esquecer de levar presentes. E parece que estamos adormecidos, em transe. Como, senão além de assim, seria possível esquecer a sensação maravilhosa que um simples cheiro pode desencadear? Esquecemos de ser felizes, de sentirmos prazer ao comer uma maçã ou entrar em contato com a água. Vira tudo rotina, inclusive todas as nossas preocupações. E a gente para. De pensar, de agir, de sentir e de acontecer. Como deixamos que isso nos aconteça? Tudo no que penso agora é naquela minha IMENSA VONTADE de estar perto do mar sempre. Será que eu conseguiria escapar da rotina e lembrar de ser feliz todo dia em que me fosse possível andar descalça na areia vendo a cor e sentindo o perfume dos oceanos? Torço para que sim. E para que algum dia eu seja capaz de fazer TUDO o que for necessário para estar perto da minha paixão eterna: esse monstro imenso de água e vida. Que saudades... não só dele, mas de mim perto dele. Do que eu sinto e penso e sonho quando estou com o mar. Como é bom parar tudo e sonhar sem precisar se preocupar com mais nada, porque todo o resto parece tão sem importância, tão sem sentido... Será que também é assim para o pai? Como será possível que ele aguente tanta pressão em um país tão distante, tão solitário, devastador? Com uma vontade enorme de largar tudo para estar ao nosso lado... como a mãe esquece disso? Será que ela precisa esquecer para poder continuar viva e sã? E como será, para ele, saber que ela não entende nem faz idéia do que ele está passando? Ele simplesmente não fala sobre isso. Será que também por isso ela não percebe? A impressão que tenho é que ele a entende tão bem... como ele consegue valorizar o que é importante para ela, como a apresentação de piano, que deve ser tão infinitamente pequena diante do que ele vive, sofre, pensa, decide? Gostaria de ser capaz também... De uma forma ou de outra, penso que a mãe e eu somos tão mais egoístas... e no fundo cobramos tão mais do outro, talvez por darmos tudo o que temos, talvez por saber que o outro tem mais para dar. Às vezes fico pensando como é para a pessoa que está comigo. Como ela vê e sente e reage a isso? Tem consciência de tudo isso ou não? Incrível a sombra das pequenas nuvens na imensidão azul lá embaixo. Pena que a água não seja mais transparente, porque na verdade eu adoraria poder ver os peixes nadando... deve ser maravilhoso ter o mar como casa. E poder nadar e flutuar... sem precisar se apoiar em nada para descansar. Que sensação! Hoje na decolagem parei pra pensar em como é possível dois meios tão semelhantes como a água e o ar terem dois mundos animais tão distintos. Há tanta vida na água, tanta coisa ali... e no ar não; parece desperdício de espaço e recursos! Por que não há, no ar, algo comparado aos milhares de peixes marítimos? Enfim... quem um dia irá encontrar solução para todas as nossas perguntas? Muitas vezes é difícil acreditar que elas existem e estão em nós mesmos. Outras vezes, acho que a vida ficaria talvez sem graça diante de respostas para todas as nossas questões. Ah... que delícia poder passar um tempo longe do trabalho e dos problemas cotidianos! Gostaria de saber talvez curtir mais essas coisas, pra que a vida ficasse mais leve. Hoje é meu primeiro dia de férias, e me sinto tão livre... tão bem, tão em harmonia, com tanta vontade de aproveitar, e descansar, e cansar, e ser feliz, e viajar, e olhar, e sentir, e lutar, e sonhar, sonhar, sonhar... até o sol raiar e eu precisar voltar ao mundo das responsabilidades e dos medos. Gostaria de poder ajudar mais aos outros... a quem acho que merece. Acredito que nada me traga tanta realização quanto estar perto do mar e/ou perto de pessoas interessantes, ter tempo para organizar algo, e ajudar pessoas que estejam precisando. Tudo isso traz sensações indescritíveis... quase como escrever. Ah, como eu gosto de escrever! Fico pensando em como, mesmo tendo sido muito infeliz em Angola, eu pude ser ajudada pela escrita, pelo mar próximo, pelas músicas das poucas fitas que sempre carreguei comigo. Isso me trouxe (e ainda traz) paz. E força pra agüentar a tempestade, enquanto não chega a bonança que, ainda bem, SEMPRE acaba chegando! Como posso ter uma memória tão ruim e ‘enterrar’ coisas desse tipo lá no fundo da minha mente? Já pensou como seria se todo dia eu lembrasse de como é bom e fácil ser feliz? Será que tenho preguiça disso? Ou isso me traria infelicidade por saber estar tão perto e ao mesmo tempo tão longe dos meus sonhos e vontades e desejos? Ah, que delícia poder estar aqui e ver o mar e pensar e escrever. E viajar!! Que bem isso tudo me faz! Que gostoso a gente poder se sentir tão completo e livre e leve e solto. E tranquilo, como se nada mais faltasse ou fosse preciso, porque assim as coisas estão perfeitas. Pena que esses momentos de euforia não duram para sempre... é tão bom estar assim! Tão imensamente gostoso! Inexplicável, mas delicioso. Como um banho no mar, ou um beijo molhado, ou um sorriso espontâneo e inesperado que você provocou. Mágico. E irresistível. Como estar apaixonado. E é então que o papel se acaba, voltamos a voar sobre terra, e volto a ler o livro. Mais feliz. Me sentindo Marco Polo.
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