Parte VIII – Primeiro ano em Angola
Da segunda vez que chegamos em Luanda, não estranhamos tanto aquilo tudo. O exército em cada esquina ainda dava muito medo, a cidade ainda era insuportavelmente suja, fedida, pobre e calorenta, mas já sabíamos disso tudo, e por isso o choque não foi tão grande. As aulas começavam dali a dois dias, e estávamos ansiosas. E tínhamos razões para estar. Iríamos conhecer gente nova, do nosso país, em um lugar (Gamek) onde poderíamos andar pelas ruas sem preocupações! Iríamos, além disso, voltar pra uma escola de verdade. Com sorte, teríamos amigos novamente. E assim foi. Apesar de pequena, a escola era muito bacana. Os professores eram muito bons, e os alunos muito legais. Depois aprendi por que, mas o fato é que quando chegamos no primeiro dia de aula, fomos MUITO bem recebidas! Todo mundo queria saber da gente: quem éramos, em que série estávamos, do que gostávamos, e muito mais. Éramos novidade num lugar onde sempre haviam somente as mesmas pessoas. Eu achei aquela atenção toda uma delícia. Falava com todo mundo, e ainda naquele ano fui eleita representante de sala, representante do ginásio, e representante de todos os alunos. Yeah, I was popular, pro bem e pro mal. Essa época foi muito melhor do que a primeira, porque tínhamos amigos e deveres, íamos à escola, alugávamos e assistíamos aos filmes da locadora, e passeávamos pela vila. Conheci muita gente legal, nesse primeiro ano! A Ká, a Rach, o Mau (que me introduziu à boa música), a Eve, o Rica, o Fê, o Rod, e muitos outros. Eu estava na sétima série, a sala tinha só 14 alunos, e era muito divertido. Frequentava a biblioteca da escola, e antes de ir embora de vez de Angola, já tinha lido mais da metade dos livros que existiam por lá. Nunca mais consegui ter esse ritmo de leitura! Em casa, tudo era mais triste. Aliás, saindo da vila tudo já era triste. Do Gamek até a cidade passávamos por 20 quilômetros de pura miséria. E sempre dava um nó no coração comparar nossa vida boa com a vida desse pessoal. Bravas mulheres que carregavam os filhos nas costas e as bacias de água na cabeça, vários homens mutilados pela guerra ou de farda, e todos eles morando no meio de um lixão. Sem água nem luz, sem saneamento básico, tudo era pó e lixo. Muito lixo. Escrevi MUITAS cartas nessa época, pros amigos que tinham ficado no Brasil. Mais uma vez, posso dizer que nunca mais escrevi tantas cartas quanto nessa época. E assim passou-se nosso primeiro ano em Angola... Quando minha melhor amiga por lá era a Ká, e eu também adorava a Rach e o Rica e o Rod. Quando íamos para a praia que ficava bem longe da cidade, mais ou menos uma vez por mês, com uns amigos do meu pai. Quando achávamos a comida do seu Davi (nosso cozinheiro) deliciosa. Quando eu faltava uma vez por mês no colégio, por causa das piores cólicas que tive em minha vida. Quando sonhávamos com o Brasil e fazíamos contagem regressiva dos dias que faltavam para irmos passar as férias em nossa Passárgada. Quando aprendi meus primeiros passos de dança com a Eve, que no segundo semestre foi fazer intercâmbio nos EUA. Quando eu vivia fugindo do inconveniente do Walter, e quando tive uma noite maravilhosa com o Rê, logo antes de voltarmos pra Sampa. Acabei suprimindo muito do sofrimento e angústia daquela época, e minha memória lembra mais facilmente das coisas boas e ligadas ao tempo em que a gente passava na vila. Fora do Gamek o mundo era outra realidade, terrível, da qual hoje eu tento me esconder, e naquele época eu também tentava, só que os gritos da realidade eram tão altos que perfuravam meus ouvidos e qualquer tampão que eu tentasse usar. As festas na vila eram legais, a gente adorava ir pra escola, e ter amigos novamente era a coisa mais fantástica do mundo. As pessoas em Angola acabavam se unindo muito, talvez porque é muito mais fácil enfrentar grandes dificuldades junto do que sozinho. A gente se apoiava e se animava um ao outro. E acabávamos ficando amigos de pessoas que não tinham nada em comum com a gente, a não ser o sofrimento, que unia a todos com sua poderosa cola. Em casa eu passava a maior parte do tempo lendo e ouvindo músicas. Até hoje lembro da trilha sonora da novela ‘Fera Radical’, que era da Rê, e das minhas fitas do A-Ha. Li todos os livros da Agatha Christie e do Sidney Sheldon da biblioteca primeiro, e depois lia qualquer um que parecesse minimamente interessante. E os dias passavam, devagar, enquanto a gente riscava cada dia que passava no calendário da sala. Podíamos fazer uma ligação telefônica a cada duas semanas, porque pagávamos duas caixas de cerveja (uma fortuna em termos relativos) a uma moça que trabalhava na companhia telefônica. De resto, os telefones quase nunca funcionavam. De vez em quando meus avós mandavam DHLs com revistas, cartas, chicletes e chocolates pra gente. Como o correio não funciona, e o telefone era só a cada quinze dias, os pacotes do DHL eram a única coisa que chegavam, ainda que só uma vez por mês, e eram esperados com a maior avidez. As cartas dos meus amigos brasileiros chegavam através desses pacotes, e eu passava as semanas seguintes respondendo tudo e escrevendo o dobro que o normal. Cartas de 20, 30 páginas eram comuns. Eu tinha gana de me comunicar com pessoa que viviam uma outra vida... como se isso me ligasse mais ao que eu queria estar vivendo. Me lembro do rabo de cavalo que eu usava o tempo todo (eu tinha o maior cabelão!!! Preciso até procurar uma foto dessa época pra escanear!), e do mar. O mar em Angola é muito bonito, as praias são belas. Íamos de vez em quando, nas épocas em que meu pai achava que havia menos perigo. Nossos amigos brasileiros iam também, e eram dias gostosos, esses em que saíamos do mundo pra ir à praia. O mar... ah, o mar... Tivemos um mês e meio de férias em julho, das quais aproveitamos cada momento em Araçatuba. Depois, tivemos as férias de final de ano, três meses e meio, que também foram divertidas e maravilhosas. Mas sabíamos que teríamos de voltar... às privadas que regurgitavam o esgoto, aos olhares famintos, à miséria total, a não poder andar na rua, a sonhar com o disk-pizza (que naquela época ainda não era conhecido como delivery) e com o cinema, com o cheiro da grama molhada (em Luanda chove uma ou duas vezes por ano – sem brincadeira! e, se não tem nem chuva, quem dirá grama!), à saudade de casa, dos amigos, da nossa terra e do nosso povo, da nossa liberdade e da nossa alegria. Por mais que tivéssemos bons momentos na vila dos brasileiros, hoje sinto que a nossa vida em Angola era um eterno ‘on hold’. Fazíamos só o suficiente para continuarmos vivendo, quando nosso grande objetivo era poder voltar o mais rápido possível ao Brasil. Mas as férias passam, e a gente volta, pro nosso segundo ano lá, na terra seca, na falta de luz e água, no mundo de pessoas que sobrevivem nem sei como.
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