Parte VI – Angola
Meu pai contava horrores de Luanda (capital de Angola), mas acabou tendo que ficar por lá. Minha mãe, irmã e eu fomos pra lá um pouco antes do Natal de 88, todas achando que meu pai estava exagerando e que a cidade e as coisas por lá não podiam ser tão ruins assim como ele falava. Podia. E era pior. Chegamos lá num calor sufocante, num aeroporto alagado, fechado e sem ar condicionado, onde tudo fedia muito (o lugar, as pessoas, a água estagnada no chão, tudo). Tudo era muito sujo, as pessoas falavam esquisito (português muito diferente do nosso e de Portugal), o calor era infernal, foi uma loucura. Sair do aeroporto foi um alívio. Mas deu medo. Em cada esquina haviam dois ou três guardinhas que na verdade eram caras do exército super armados (de metralhadora na mão). Mas, estávamos indo pra casa, onde as coisas não deviam ser tão ruins. Eram. Chegamos num prédio horroroso, parecendo uma grande favela, no meio de uma grande favela, cheio de lixo no chão, e quando eu digo cheio, quero dizer CHEIO (o lixo devia chegar a um metro de altura). Minha mãe achou que meu pai estava brincando, e que a gente não iria morar ali, mas ela estava enganada. Morávamos no primeiro andar, o que era uma sorte, porque o elevador do prédio não funcionava. Pouca coisa funcionava, aliás. Tínhamos um gerador no apartamento, porque quase nunca tinha luz da rua. Água, comprávamos muita, e tínhamos duas caixas d’água também, porque quase nunca tinha água da rua. Os banheiros viviam entupidos e regurgitavam esgoto. O apartamento era limpo (tínhamos dois empregados), mas nunca vi tanta barata na minha vida, mesmo com as dedetizações bimensais. Luanda não tinha lojas, nem restaurantes, nem cinema, nem nada. Nada. Podíamos fazer compras em dois supermercados, ambos estrangeiros, mas precisávamos ter uma conta bancária na França para isso. Tudo era muito feio, sujo e pobre. Quase morremos de tristeza nos primeiros meses, vendo gente morrer de fome e ser linchada na rua. Foi triste, e muito. Estávamos em férias escolares, e não podíamos sair de casa, porque todo mundo dizia que era perigoso, e também por não termos aonde ir. Só saíamos de casa para fazer compras no supermercado, uma vez por semana, de carro. Os angolanos não tinham o que comer, nem o que vestir, nem nada. Nada. Miséria total. E nós presos naquele apartamento que realmente parecia uma prisão, com aquelas grades horrorosas em todas as janelas. Essa foi minha primeira impressão de Angola: sujeira, miséria, angústia, tristeza, desespero, impotência. Foi o pior Natal de que me lembro, e aliás, de que não me lembro, pois acho que dormimos tanto no Natal quanto no Ano Novo. Dessa primeira vez ficamos em Luanda não mais que três meses, mas pareceu um pra sempre que não ia acabar nunca e que, de certa forma, ainda não acabou mesmo, já que meu pai continua morando lá.
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