elegia
a iaia foi brincar com os anjinhos. minhas melhores lembranças dela são todas da infância, muitas ligadas a comidinhas. a sopa da iaia era uma delícia, sempre com queijo fatiado cobrindo o prato. a forma como ela cortava a parte de cima da mexerica, com tesoura, antes de tirar os caroços e levar à boca, sempre me vem à memória quando como essa fruta. as colheres de plástico azul com que as comidas eram mexidas nas panelas na casa da iaia me marcaram a ponto de eu procurá-las por todo canto quando comprei minha primeira casa – eu queria cozinhar com colheres como aquelas, na esperança de que minha comida ficasse tão gostosa quanto a da iaia. as muitas ‘truitetas’, omeletes catalães com tomate, queijo, cebola, praticamente uma tortilla espanhola, são lembranças das vezes em que dormimos na casa da iaia. nessa mesma época, os pães da nona estavam sempre presentes no lanche da tarde. os almoços em família, todo sábado, deixaram saudades. os almoços de natal, em que algum convidado se fantasiava de papai noel pra distribuir os presentes pras crianças, por muitos anos foram considerados por mim como o ideal natalino em família. um dos enfeites do presépio da casa da iaiá era o caganê, um enfeite que só aparece em presépios catalães. o ninot, bonequinho com corpo de pano em que a iaia escondia carmelos, era um dos poucos brinquedos da casa da iaia que remetiam à nossa cultura catalã, e os netos adorávamos não só o bonequinho, mas também as balinhas escondidas nele. e, claro, impossível pensar na iaia sem lembrar das paellas, dos fideuás, das escalibadas, dos canelons, das cremas cremadas, e dos braços de gitano, que sempre achei as melhores comidas do universo. tirando as comidinhas, tem o crochê, que ela tentou me ensinar pacientemente, nas tardes em que assistíamos tevê, enquanto ela tricotava e bordava e crochetava e costurava. tem as sardanas, que todos os primos e tios dançávamos sempre no natal. tem a língua catalã, que ela e o avi conseguiram manter tão viva e presente em nossas vidas (somos três filhos e oito netos). tinha o canarinho tão cantante que ouvíamos sempre que estávamos na casa desses avós queridos. tem as músicas em catalão, uma das quais a rê canta hoje pro lucca (patufet, ont ets, estic a la pancha del bol, ont ni neva ni plou!). graças a esta minha avó paterna, o maior palavrão que sei em catação consiste em xingar o outro de pestanaga, que significa cenoura. foi com ela que aprendemos que fazer xixi, em catalão, se chama ‘fer um riuet’ (fazer um riozinho). a iaia tinha muitas dores de cabeça quando éramos crianças pequenas, que depois foram passando com o tempo. quando éramos menores, ela cuidava da nona, e cortava os cabelos dos filhos e dos netos todos, que se sentavam num banquinho no banheiro dela, muitas vezes depois dos almoços de sábado. numa outra vida (em que ela ainda não era avó), ela tinha sido uma cabeleireira ótima, tendo se dedicado a fazer perucas numa época. nas fotos da iaia mocinha, quem aparece é uma mulher linda, magrinha, charmosa, que sempre me pareceu ter cara de estrela de cinema. mas na minha memória ela é sempre uma senhorinha de cabelos ‘de ovelhinha’ – a iaia sempre fez permanente e usou cabelos curtos, e desde que eu me lembro, ela tem os cabelos branquinhos. simpática, sorridente, prática, de andar rápido – essa é a minha iaia -- uma moça linda e uma avó querida. espero que agora você descanse muito, iaieta, e encontre a comunhão e a paz que sempre almejamos. pra sempre.
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