Ontem, chegando em casa, acendi um incenso de lírio no quarto. Fechei a porta, apaguei as luzes, abri as janelas e me sentei na cama, com as pernas cruzadas e as mãos sobre os joelhos, olhando para a noite lá fora, da qual só consigo ver a escuridão e as paredes do hospital vizinho. Com uma música gostosa vinda do rádio, consegui me abstrair dos barulhos lá de fora, me concentrando apenas nos meus próprios ruídos. Fui flutuando junto com a música, que me trouxe memórias da infância, de um dia de chuva com a minha mãe, que me ensinou a aproveitar um toró dançando na calçada com um sorriso enorme no rosto e uma sensação de liberdade incrível. Lembrei da vez em que voltamos pra casa com uma machadinha de pedra e um arco-e-flecha de bambu e sisal, feitos por índios. E de quando a mamis fez um bolo numa forminha de pão de queijo, pra gente fazer um 'chá' com as bonecas, que tinham mesa e cadeiras de papelão, também feitas pela criativa mãe que tenho. Lembrei dos discos que colocávamos lá em casa, quando arrastávamos o sofá e a mesinha da sala a fim de termos espaço pra dançar. E da vez em que meu pai comprou um pão com oito bicos (que a Rê e eu gostávamos mesmo era de comer todos os bicos dos pães) num domingo de manhã, na padaria. Daquela vez, como ele estava inspirado e tinha trazido também 'urélhas' (um doce conhecido como palmier, que meu pai teima em chamar de orelhas, que em catalão se pronuncia urélhas) pra casa, a Rê eu eu, de tão maravilhadas com as urélhas, acabamos nem comendo pão, apesar de termos ficado intrigadas com a possibilidade de um único pão ter oito bicos, e não apenas dois. E assim fui voltando no tempo, balançando os braços e o corpo ao compasso da música, vendo as luzes das janelas do hospital ao lado, me sentindo ao mesmo tempo boba e feliz com aquele momento. Às vezes me esqueço de como algo tão simples como música e incenso podem trazer tanta paz, tanta alegria, tantas memórias. Como algo tão pequeno pode fazer tão bem, bastando que paremos um pouco pra apreciar.
just like heaven
Tudo parece ousado àquele que a nada se atreve, por isso... atreva-se!
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