just like heaven

Tudo parece ousado àquele que a nada se atreve, por isso... atreva-se!

10 junho 2002

Quando eu era pequena, eu achava a vida chata, como canta o Lulu. Principalmente na época em que a gente morava no Ecuador, porque não íamos à escola, não tínhamos amigos, e tudo em casa era um tédio só. Não podíamos sair pra brincar na rua, a programação televisiva só começava depois do almoço, e não aguentávamos mais jogar atari. Duas crianças sem ter nada o que fazer, trancadas em casa com a mãe, entretida com músicas e livros e preparação de aulas de português para estrangeiros, e a Carmen, que às vezes brincava com a gente, embora na maior parte do tempo estivesse ocupada cuidando da casa. Inventamos mil coisas, nessa época, a Rê e eu. Trocávamos brinquedos, fazíamos uma zona tentando ajudar a Carmen a preparar o almoço, aproveitávamos o papel do jornal para fazermos dobraduras, montávamos casas inteiras em papel sulfite (com móveis, jardins, e tudo o mais), quebrávamos todos os recordes dos jogos do atari, pintávamos as camisetas velhas com giz de cera, fazíamos desfiles de moda com as roupas e os sapatos da minha mãe, juntávamos as duas escrivaninhas e as cobríamos com lençóis para brincar de casinhas com as bonecas, fazíamos karaokê na cozinha... mas, ainda assim, morríamos de tédio. E queríamos voltar pro Brasil, que a Rê pensava que era Araçatuba, porque quando chegávamos em Sampa ela ainda perguntava pra mãe quando iríamos chegar no Brasil, na casa da vó, pra rever o Tatá e os primos e a piscina e os jujus que o vô guardava no freezer só pra nos esperar. E que festa quando chegávamos em casa! A casa da vó e do vê sempre foi, na verdade, aquele porto seguro pra onde vamos quando queremos aquietar o espírito. Passamos todas as nossas férias de infância lá, pulando elástico e nadando na piscina, colocando o balanço de frente pra água, pra vermos quem conseguia dar o salto mais bonito (certeza absoluta: sempre tivemos anjos da guarda que se desdobravam para não nos deixar fazer nenhum dodói). Tudo na casa da vó era gostoso: sempre fazia calor, sempre tinha um monte de gente pra brincar, sempre podíamos fazer a maior bagunça sem que ninguém brigasse conosco, sempre passeávamos muito, com ou sem os adultos, e era lá que nos sentíamos completamente livres, em tudo. Livres pra fazermos qualquer coisa, a qualquer hora, que coisa boa :-) Até que chegava a hora de irmos embora. Eu, mais animada, com a perspectiva de conhecer um lugar novo, que desta vez poderia ter pessoas bacanas, uma escola legal, e muitas coisas diferentes pra curtir. A Rê ia embora chorando, toda bonitinha, de cabelo com fita amarela e racum no colo, pensando que ele seria seu único amigo até as próximas férias. É claro que o lugar para o qual íamos nunca era tão bom quanto eu achava, nem tão ruim quanto a Rê pensava, mas é certo que a gente sempre, sempre, sempre ficava sonhando com a volta para casa da vó... Mesmo nos melhores lugares onde já estivemos, nossa cultura nos fazia falta. Nossos amigos, nossa comida, nossas ruas e o cheiro de Araçatuba nos faziam falta. Ficávamos anisosas, com o passar do tempo, pra voltar a encontrar gente como a gente. São essas pessoas, afinal, aquelas capazes de espantar o tédio. A vida na casa da vó podia ser tudo, menos chata.