just like heaven

Tudo parece ousado àquele que a nada se atreve, por isso... atreva-se!

05 abril 2001

Minha primeira história de ficção fala de Dalia, uma menina de seis anos e seus tormentos.

Deitada na sala, pensava sobre a vida, sobre os sonhos, sob a luz das estrelas. Perguntando-se como alguém tão pequena pode sentir tamanha solidão e dor. Como pode essa dor física na barriga, no peito e nas pernas brotar do coração, causada por falta, por saudades, por estar só? Pensava na piscina da casa da vó, onde era sempre feliz. Nos primos, tios e amigos. Ali onde estava, o único lugar realmente seu era o cantinho embaixo da cama. O único local onde ela se sentia bem e podia mostrar quem realmente era. Ao lado da caixa de papelão, onde guardava seus mais valiosos pertences (porque um ladrão jamais olharia embaixo de sua cama ao roubar a casa): a Cecília, boneca preferida de roupa amarela; o Dênis, ursinho marrom glacê vindo de uma das viagens do pai; o estojo de lápis de cores, que de tão bonito nunca tinha sido usado, que era pra não estragar; o bloquinho de notas da Hello Kitty; um cartão-postal meio amassado de quando o pai estivera em Jacarta; duas bolinhas de gude; um chaveiro sujo e disforme, recordação de seu grande amor do jardim de infância; seu par de meias cor-de-rosa; um fio quebrado do violão da mãe; o porta-retratos roubado da casa da tia, com foto da família inteira; e sua coleção de papéis de carta com cheirinho. Ela ainda cabia sentada embaixo da cama com tranquilidade. Era dali que vivia suas maiores aventuras, com toda a tripulação dos discos que sobrevoavam a face terrestre, comandados por ela e James, seu melhor amigo. Às vezes chegava a se perguntar se aquilo eram sonhos, mas geralmente só vivia, aproveitando a companhia, o poder, as explorações na Terra, e as viagens extravagantes proporcionadas pelos discos voadores. Princesa Dalia, era como a chamavam. Linda e querida por todos. Ela jamais se sentia só ali, entre seus súditos. Pena eles não terem coragem de visitá-la quando ela não estava debaixo da cama. Será que a mãe não via seu poder e majestade? Por que não lhe era permitido passar mais tempo em seu cantinho? Ela tinha tentado explicar pra mãe que se sentia muito bem ali, onde era visitada por seus amigos. Como resposta, ouviu um comentário sobre a sujeira, a umidade, o calor, a imaginação e a dor nas costas. Coisa de gente grande, que ela não compreendia. Por isso estava na sala, sofrendo, com dor. Sem amigos. Sem suas coisas prediletas. Sem nada. Seus seis anos não lhe permitiam ter vida própria fora de casa, onde o perigo reinava. E seus deveres de casa, sua única distração, eram feitos logo após o almoço, enquanto o desenho mais chato da TV parecia divertir seu irmão bobo. O resto da tarde ela passava assim, na sala, sem ter o que fazer. Sem sair de casa. Sem poder fazer barulho (sua mãe está com dor de cabeça, você precisa aprender a respeitá-la, quantas vezes vou ter que repetir?). Sem diversão, sem desenho na TV, sem outras crianças pra brincar e conversar. Se ela pelo menos pudesse brincar com suas bolinhas de gude... mas não. Elas não podiam sair de seu esconderijo. E se um ladrão chegasse em casa e as roubasse? Ela seria incapaz de viver sem suas bolinhas de vidro colorido. Que angústia sentia nessas horas! Uma dor dentro do peito que se alastrava e fazia com que ela não quisesse nada: nem falar, nem comer, nem se mexer, nem existir. Ela só queria chorar. Mas não podia, porque se ganhasse o apelido de chorona não poderia mais ir com o tio Zé tomar sorvete de casquinha na praça, como tinha acontecido com seu primo Fábio. E ela gostava muito de tomar sorvete de casquinha e de ouvir seu tio conversando com as moças de saia curta que passeavam na praça. Só seus amigos dos discos voadores falavam coisas bonitas pra ela daquele jeito. O tio devia gostar muito de todas aquelas garotas, e ela queria muito ter alguém que gostasse dela. Não entendia como as meninas da escola só falavam de figurinhas, desenhos e passeios. Por que só ela parecia sentir aquela dor? Aquela vontade enorme que parecia sufocá-la? As meninas não falavam mais com ela, achavam seus assuntos esquisitos, sem falar no pouco caso que fazia dos meninos que sempre perseguiam todo mundo na hora do recreio. Todos corriam, gritando, ela só não entendia com medo do que. E ninguém entendia como ela não tinha medo. Nunca lhe passou pela cabeça que as pessoas grandes pudessem sentir aquilo tudo que ela também sentia. Afinal de contas, as pessoas grandes eram muito estranhas e pareciam viver num mundo diferente, já que não se preocupavam com ela nem com as coisas que lhe eram importantes. Ninguém se preocupava com ela e com as coisas que lhe eram importantes. E aquele tédio, aquela falta de coisas legais pra fazer, aquele silêncio e escuridão dentro de casa, aquela falta de algo que não sabia explicar, tudo aquilo a deixava triste. Com vontade de tomar aquelas bolinhas brancas que faziam a mãe dormir. Mas ela não podia. Não podia nada. Nem chorar, nem ficar no seu cantinho, nem cantar, nem brincar com as crianças na rua, nem tomar as bolinhas brancas da mãe, porque era perigoso. Até quando ficaria dentro de casa? Quando aquela dor passaria? Queria ir pra casa da vó. Lá não tinha dor. O vô comprava chiclete e escondia pela casa inteira, só pra ela achar. E ela podia brincar com o Português, o coelho da prima que morava no jardim da vó. Ele era mudo, porque não conversava com ela igual à cachorra Duda, que foi a primeira que disse que também se sentia sozinha. Mas era mais divertido, porque a Duda estava sempre triste, e o Português estava sempre sorrindo. Engraçado, alguém mudo que mesmo assim vive alegre, né? Mas o coelhinho era assim. E ela achava que isso acontecia porque ele não tinha medo e todo mundo se preocupava com ele. Todo mundo adorava pegar o Português no colo pra fazer carinho, e por isso ela disse pra mãe que queria ser uma coelha, porque vida de coelha é que era vida boa. A mãe murmurou alguma coisa sobre comer carne de coelhos que ela não entendeu direito, porque nunca poderia imaginar alguém comendo um bichinho bonitinho e sorridente como o Português, mas essa gente grande tinha idéias doidas, ela sabia. E a mãe não falava alguma coisa que fizesse sentido há muito tempo, desde que o pai tinha ido embora de casa. Teve que perguntar pra vó, que explicou que tinha gente diferente que matava bichos pra poder comer. Ela prometeu que quando crescesse não iria ser uma pessoa grande daquelas malvadas que comem Portugueses. Mas ela não queria ser grande. Não queria ser igual a mãe. Só queria ir pro seu canto, embaixo da cama, pra poder ficar perto da Cecília e dos amigos dos discos voadores, de quem sentia saudades. Ela queria ser livre e poder fazer barulho. Queria poder brincar e passear todo dia na praça. Queria encontrar amigos que pudessem estar com ela mesmo que ela não estivesse embaixo da cama. Ela não se sentia bem, nunca, ali na sala. Por que a mãe queria que ela ficasse ali? Será que ela não entendia? Impressionante como as pessoas grandes podem ser cegas e burras, ela sempre pensava. Não queria fazer mal a ninguém, só queria encontrar os amigos! Mas não podia, definitivamente. Não queria ganhar mais uma surra de cinto da mãe. Mesmo a vó não sabia dizer por que ela não podia ficar no seu cantinho; ela já tinha perguntado mas não podia perguntar mais, porque naquele dia a vó gritou com a mãe, e ela sabia que a culpa era dela, e não gostava de gritos. Sabia que todo mundo só grita quando sente muita dor, e muito aperto no peito. Ela não queria que a vó ficasse triste e sentisse seu coração pequenininho e sua garganta sufocando só por causa dela. Ela queria morar com a vó. Lá tinha doce de banana e de abóbora, e bastante leite com chocolate. E o Português, sempre contente. Ele não a deixava sentir dor. Ele devia ser gente e morar na casa dela, e não devia ser mudo. Ele devia falar coisas bonitas, que nem o tio falava pras meninas da praça, enquanto ela tomava sorvete de casquinha. Daí ele seria melhor que o James, que só aparecia embaixo da cama. E se ela pudesse ser uma coelha, o Português ia viver fazendo carinho nela, pegando-a no colo. E ela não se sentiria sozinha nunca mais. Vó, dá pra eu trocar com o Português e ser coelha? Daí ele podia ser gente e não ficar mais mudo! Não dava. E, mesmo que desse, ela não queria ser muda. E ficaria com medo da gente diferente que come Portugueses. O coelho não tinha medo porque ninguém tinha contado pra ele que existia gente assim, mas ela sabia. Naquela noite em que estava deitada na sala pensando sobre a vida, sobre os sonhos, sobre sua dor, sob a luz das estrelas, a tia chegou e disse que ela iria morar na casa do tio. Ela se levantou e foi devagar e com cuidado avisar a mãe, que estava muito branca e não se mexia. Estava da cor das bolinhas que tomava pra dormir. Muito bonita, mas gelada. Ela tinha vontade de acordá-la, mas não podia fazer barulho. A tia ficava falando que a mãe tinha ido embora e não ia voltar mais, porque tinha engolido todas as bolinhas do vidro cor de laranja. Mas era mentira. A mãe não tinha ido embora. Ela sabia que a mãe estava ali, na cama, deitada e gelada, em silêncio. Ela podia ver. Perguntou pra tia se podia fazer barulho na casa do tio, e se podia levar sua caixa de papelão. A tia chorava ao dizer que sim, e ela não entendia porque. Ela estava feliz. Muito feliz. Mais feliz ao saber que poderia ficar embaixo da cama quando quisesse, porque a tia não parecia se importar com isso. Sorria desesperadamente, pensando que poderia fugir, finalmente. Poderia ser livre. Não precisaria mais ficar sem o James, e poderia encontrar todos os amigos dos discos voadores. Veria a vó que morava ao lado da casa do tio, sempre que tivesse vontade. Brincaria mais com o Português. E o tio ia gostar dela que nem gostava das meninas de saia curtinha. Era a melhor coisa que podia acontecer em sua vida. Ela não conseguia entender porque a tia estava chorando e continuava falando que a mãe tinha ido embora pra sempre. Fala baixo, tia, que você vai acordar a mãe, e ela vai ficar brava de verdade, por favor, fala baixinho. A mãe não vai achar ruim você me levar pra casa do tio, eu prometo. Acho que ela não gosta muito da gente aqui. A gente faz muito barulho, e nem pode fazer nada, nem falar nada. Prometo que ela não vai se importar. Mas cuidado pra não acordar a mãe, por favor. Cuidado, tia. Nada adiantava. A tia parecia estar num outro mundo, aquele em que as pessoas grandes não enxergam as meninas pequenas. E não parava de chorar. Ela decidiu deixar a tia ali, chorando. Beijou a bochecha fria e mole da mãe, sem fazer barulho, e com muito cuidado pra não acordá-la. Pegou sua caixa de papelão no cantinho debaixo da cama. E ficou na porta de casa, com o dedão da Cecília na boca, esperando a tia levá-la daquele mundo infeliz e escuro pra um lugar novo. Onde ela poderia respirar. E ser feliz.