just like heaven

Tudo parece ousado àquele que a nada se atreve, por isso... atreva-se!

23 março 2001

Acordaram chamadas pela mãe, que já tinha preparado o café. Com preguiça de saírem da cama num dia de férias, dormiram mais um pouco, até que o pai entrou e as fez acordarem de vez, dizendo que já estavam atrasados pro passeio. Uma comentou com a outra que o pai estava estranho, nervoso, impaciente. Ele não queria ver o quetzal, conforme ficaram sabendo no caminho para o parque; queria ficar no hotel. Não estava se sentindo bem, inquieto e angustiado com algo que ninguém sabia identificar ou explicar. Chegando ao parque, ele não parava em lugar algum. Apressou o passeio pela linda trilha de onde diziam se poder ver o quetzal, ave rara e quase extinta da região. O casal de amigos reclamou de sua pressa, e as suas três crianças se juntaram às duas meninas nos comentários sobre o pai irrequieto. A trilha parecia não acabar nunca, e agora todos quase corriam, seguindo o líder da família Souza, cujo mal-estar piorara. Os planos de almoço no parque seguido de descanso e visita às cachoeiras foi por água abaixo, quando saíram sem sequer se despedir do gentil guarda florestal, e sem terem tido tempo de procurar o pássaro real. A mãe tentou acalmar as meninas, cantando com elas durante o caminho de volta ao Hotel Villa Rica. De repente, o pai grita ‘Suzana, esconde as armas sob o painel do carro, corre, corre’, enquanto ele mesmo tenta guardar a pequena granada na fiação presente sob o ar-condicionado. A mãe se assusta e pergunta o porquê daquilo tudo, enquanto tenta se acalmar e guardar sua 9mm e a Taurus do pai embaixo do painel, de onde elas teimam em cair. O pai explica, reduzindo a velocidade, que havia guerrilheiros na estrada, e a mãe diz que pareciam apenas pessoas do exército. Mas as botas de borracha dos meninos vestidos de verde não haviam passado desapercebidos aos olhos do pai, que já se perguntava o que seria de sua família se o rádio de comunicação com o exército pregado ao chão do automóvel fosse descoberto. Sorte que os vidros espelhados não deixavam nada à vista... a não ser que alguém quisesse revistar o carro... Absortos cada um em seus próprios pensamentos que não duraram mais de cinco segundos, foram parados por um caminhão que atravessava as duas pistas da estrada nas montanhas, e se viram em uma ponte, retirados à força do veículo por garotos armados até os dentes. Eles não falavam espanhol, como a maioria dos guatemaltecos. Apenas o líder, Javier, ousava trocar algumas palavras com o motorista, dizendo que queria dinheiro, ameaçando incendiar o carro. Com metralhadoras apontadas para si, o pai entregou tudo o que possuía na carteira, dizendo à mãe e às filhas que se algo acontecesse, ou se algum daqueles meninos ultrapassasse a barreira dos vidros espelhados da Cherokee, elas deveriam se jogar da ponte, o que seria certamente mais seguro que ficar sob o domínio da guerrilha que os encontrasse com meios de comunicação diretamente ligados às forças armadas. As meninas, assustadas, ficaram quietas. Até que tiveram coragem de olhar para baixo e ver que só havia pedra e mato sob a ponte. Se perguntaram o que seria delas se fossem descobertas, e abraçaram a mãe que tentava, em vão, consolá-las. Os filhos do casal amigo se acercaram delas, também assustados; o menino chorava e dizia que não queria mais participar de uma aventura. Todos observavam Javier e outros vinte ou trinta garotos, adolescentes com menos de 16 anos, ocupados em assustar outros viajantes com suas metralhadoras e seus modos brutos, gritando apenas ‘dinero’, como se não conhecessem outra palavra. O líder voltou até João, que agora associava sua impaciência matutina ao que estava por acontecer. Ele, que sempre fora bastante intuitivo, jurou a si mesmo não desprezar mais o que sentia, quando o chefe do grupo disse estar certo de que estrangeiros com um carro tão bonito por certo deviam possuir mais dinheiro consigo. As meninas viram seu pai jurar que não tinha mais nada, enquanto Javier fazia chamas brotarem de um longo pedaço de papel, que aproximou do tanque da Cherokee. Todos tensos, incrédulos perante aquele homem que tentava colocar fogo em um tanque repleto de combustível, pensavam se ele não percebia que seria o primeiro a morrer na explosão. Com todos os sentidos compenetrados naquele ato insano, ouviram, então, um barulho ensurdecedor vindo da floresta que margeava a estrada. Ao chamado de muitas vozes, altas e agudas, parecendo uma algazarra desordenada de gritos estridentes, todo o bando de meninos de bota de borracha entraram, correndo, no mato cerrado das montanhas. Os viajantes, ainda se recuperando do susto e sem entender bem o que estava acontecendo, ficaram todos petrificados, paralisados pelo medo. Até que o motorista do caminhão que bloqueava a estrada soltou uma gargalhada estrondosa, como se tudo não passasse de uma grande brincadeira, depois da qual gritou ‘malditos chinos’, se ocupando em retirar o veículo do meio da ponte. Como que por um passe de mágica, aquele riso grotesco pareceu despertar todos os que estavam por perto, que começaram a falar, chorar e se abraçar, tudo ao mesmo tempo, como se algo de realmente extraordinário tivesse acontecido, fazendo com que ninguém pudesse conter suas emoções. O menino que não queria mais viver aventuras borrou as calças. Duas mulheres que pararam atrás da Cherokee se beijavam na boca. O pai respirava aliviado, sem conseguir parar de repetir que jamais deixaria de dar ouvidos à sua intuição novamente. As duas meninas, ainda grudadas à mãe, tentavam relembrar o acontecido, verificando se realmente aquilo tudo havia se passado, com o coração ainda querendo sair pela boca. Olhando para aquele céu de um azul límpido, e excitadas com os acontecimentos, elas sorriam. Um sorriso alheio à toda aquela confusão, que resplandecia toda a paz que sentiam. Elas se sentiam brilhar, e ficaram ali brilhando por um bom tempo, até voltarem para a Cherokee e irem em direção ao hotel, ouvindo o pai chamar pelo rádio: ‘alfa-bravo-romeu, aqui charlie-alfa-charlie-5-9-4, reportando muchas lechugas en estrada brava, km.76, repito: muchas lechugas en estrada brava, km.76, están copiando?’

Apenas os nomes são fictícios.
Resquícios do FDNG, maior movimento guerrilheiro da Guatemala, ainda existem. Garotos de 12 a 16 anos constituem mais de 70% de sua força armada.
O casal de amigos com seus três filhos levam hoje uma vida pacata em Assunção do Paraguai.
João mora na África, e aprendeu a escutar seu espírito, tendo sido salvo por sua intuição muitas e muitas vezes, inclusive na companhia de esposa e filhas.
A mãe está fazendo aniversário hoje.
As meninas, que ainda guardam cópias do papel amarelado onde se lê ‘FDNG: libertación o muerte’, têm muitas outras histórias pra contar...