Acabei meio que devorando o livro, e acho que precisei de um tempo pra digerir tudo o que li... Muito bom ‘Estação Carandiru’. Muito bem escrito, muito gostoso de ler, rápido, interessante. E como me lembrou Angola! Só ontem fui ter coragem pra parar pra pensar no porquê de ter me lembrado tanto... e acabei chegando à conclusão de que TUDO lembra lá! A má conservação do lugar onde o pessoal mora, a falta de água, a pobreza, a miséria, a imundície, a falta de comida, as represálias, o código de ética não escrito, o pouco valor da vida humana, a corrupção, os vícios, as doenças, a falta de médicos e de condições para tratar os doentes, as punições que sofre quem não tem status ou comete alguma infração (punições estas vindas dos próprios companheiros, e não de um órgão central e público), a falta de liberdade para ir e vir. Gente sem condições humanas para existir, e não digo viver, porque viver é muito mais que isso... Falta tudo lá, até mesmo esperança. Falta dignidade. Passei três anos em Angola. A capital, Luanda, é uma grande favela, e não tem casas bonitinhas, é TUDO favela. Três anos sem sair de uma casa que mais parecia uma cadeia, porque tinha grade em todas as portas e janelas. Só podíamos sair de casa de carro, e fazíamos um único percurso: de casa pra escola (na vila dos brasileiros), e da escola pra casa. Demorávamos quase dez minutos, já dentro do carro, pra sair de casa. Abria-se um portão, o carro o atravessava e este era fechado. Abríamos então o outro portão, que finalmente dava pra rua. Pra sair de casa pra entrar no carro era a mesma coisa: a Segunda porta de casa só se abria se a primeira estivesse fechada. Como no Carandiru, vejam bem! Três anos sem contato com o mundo lá fora, porque não tem jornal, revista, nem TV em Angola. Não há notícias. Não há nada. Não tem lojas em. E tem muita gente que tem muito dinheiro, sem que com ele se possa comprar alguma coisa. No Carandiru a moeda é o cigarro. Em Luanda é a latinha de cerveja. Quer um fica impressionado com o valor de uma única latinha... Mesmo assim, difícil é encontrar com que gastar as latinhas, se vc as tem, porque não há muito à venda por lá. No primeiro mês de inferno, vimos, pela janela do quarto (escondidas atrás das cortinas as três, minha mãe, minha irmã e eu), um homem sendo linchado na rua. Ele estava amarrado a uma moto, que o arrastava impiedosamente pelo asfalto, enquanto centenas de pessoas nele batiam, cuspiam, chutavam. Não dezenas, mas centenas de pessoas, fazendo aquilo a um ser humano. Nosso cozinheiro me disse que essa era uma prática comum por lá: justiça se fazendo com as próprias mãos, porque o governo estava muito mais preocupado com a guerra do que com cidadãos que transgridem a lei. Esse coitado que vimos sendo linchado havia roubado um litro de água. Morreu por causa disso. E não foi uma morte indolor... Outra coisa chocante era a quantidade de policiais. Em cada esquina, pelo menos dois, armados até os dentes. Foi um deles que vimos, da janela do carro, fuzilar um menino que tinha uma máquina fotográfica na mão, porque é proibido tirar fotos em qquer lugar público da cidade. Gente morrendo de fome, ou de sede, tem muita. Gente que cai na rua e não levanta mais, tem muita. E tem muita mulher, e muita criança. Os homens que se v6e são só os do exército. Porque todo menino depois de completar 13 anos é convocado a ir pra guerra. Não quer ir? Não tem problema... já viu aquelas carrocinhas que passam na rua pegando cachorro que vai virar sabão? Lá em Luanda eles fazem isso com gente. Saem atrás de meninos, os amarram, os surram, e os levam pra serem treinados a ir pra guerra. Treinamento este que dura exatamente 36 horas. Entre ser capturado e embarcar num pau-de-arara que leva até onde o conflito está. A cidade tem três hospitais. Um em ruínas. Outro sem teto. Os três sem remédios, sem profissionais, sem nada. E há doentes, no hospital sem teto, sendo picados por insetos e mosquitos. Há centenas de cirurgias feitas sem a mínima condição de assepsia, sem anestesia, sem anti-inflamatórios no pós-cirúrgico. Nunca vi tantos casos de AIDS, cólera e tuberculose como vi por lá. Nunca vi tanta gente tão magra. Sem roupa. Sem comida. Sem água. Sem nada... e o mais impressionante é que eles continuam vivendo. E nascendo. Outro dia vi o presidente de um país africano dizendo que se nenhuma medida drástica fosse tomada, a população de seu país seria dizimada pela AIDS até 2005. E não achei que ele estivesse exagerando. Não tem pão nem circo pras pessoas que moram em Angola. Tem um cinema na cidade, completamente destruído. Lojas? Não tem. Padaria? Não tem. Praça? Não tem. Igreja? Não pode ter, o país é socialista... Cabeleireiro, loto, xerox, pizzaria, lojinha de souvenirs para turistas? Acorda, vc está num país socialista em guerra! Que comprou dez toneladas de arroz considerado impróprio para suínos (imagina pra gente!) para distribuir entre seu povo. E comprou vinte mil chuveiros elétricos para distribuir em uma cidade onde não há energia elétrica! Um país rico em petróleo e diamante que gasta todos os seus recursos em armas. E uma lata de cerveja dá pra isso... pra matar alguém com uma das armas que o governo comprou. Uma única latinha, daquela que vc bebe todo dia na happy hour. Um mundo à parte. Do qual a gente fala sem que ninguém acredite muito. Não dá pra imaginar que o que conto é verdade, eu sei, meu pai contava pra nós e a gente tinha certeza de que ele estava exagerando. Mas não estava. E não estou. É um mundo onde nada existe... nada como conhecemos. Voltei de lá um pouco mais louca, eu acho. Com manias engraçadas! Ainda fico maravilhada quando abro o chuveiro e vejo aquela água toda saindo de lá, e brigo com meu cunhado por deixar a torneira aberta enquanto escova os dentes! Toda vez que chega junho e os rojões são disparados, me encolho na cama, pensando que são tiros e não rojões. Quando pedimos pizza e alguém vem até em casa entregar, agradecemos de coração a esta alma caridosa, que às vezes se assusta com isso. Quando vou ao supermercado fico besta com a quantidade e a variedade de coisas que encontro. E quando ouço alguém falando mal do Brasil tenho vontade de matar! Mas, aos poucos, a gente vai se acostumando... e desejando não ter que ver uma realidade assim nunca mais. Talvez seja por isso eu seja seu símbolo de felicidade constante, Edu... o otimismo vem todo de conseguir ver coisas maravilhosas que ninguém mais enxerga, principalmente qdo estou triste. É só pensar nas poucas pessoas que conheci lá em Angola, e nas muitas que vi, sempre pela janela, de longe. Pessoas que só existem por não terem idéia da existência de um mundo como o nosso, onde todo mundo pode ter tudo o que deseja. Ou quase tudo. O que me manteve sã durante todo esse tempo? Os livros. A música. As cartas que recebíamos clandestinamente. E as viagens pra minha Passárgada (onde sou amiga do rei, como Manuel Bandeira), que na época era Araçatuba (Ata), no interior de SP. A cada 4 meses de Angola passávamos dois em Ata. Aproveitando tudo o que podíamos e não podíamos, antes que acabasse e precisássemos voltar para o inferno. Mas Angola não era de todo ruim... minha melhor amiga, a conheci lá. Uma brasileira que hoje é dentista e mora no Rio. E a praia, todo domingo, na ilha do Mussulo, era a maior bênção com a qual poderíamos sonhar, estando lá. E como o sofrimento é sempre acompanhado de crescimento, ainda me espanta como amadurecemos, todos nós, naquela época! Aprendemos a dar importância ao que realmente conta. E que experiência de vida! Como a Poli, só que em escala ampliada, entende? Foi uma droga mas teve muitos pontos positivos, principalmente as pessoas. Angola foi assim tb. Numa escala infinitamente maior. A ponto de me fazer perder a vontade de conhecer o Egito, o Marrocos e a África do Sul. Eu, que adoro coisas novas e que sempre tô com a mala pronta, caso alguma viagem apareça! Pra África, não. Pelo menos não tão cedo. Please! Detalhe: meu pai continua lá. Já tem mais de dez anos. Morro de pena dele.
Não vou rever o texto antes de postar, senão vou achar que tá uma droga (pq deve estar mesmo, todo fora de ordem, já que foi regido por lembranças e emoções, meu caro Watson). Fux. Não vai ser a primeira droga postada, that’s for sure! Pior é que comecei a reler e achei eu estava triste... embora deva admitir que não sinto tristeza ao falar de tudo isso (a não ser qdo penso em meu pai)... sinto, sim, um contentamento indescritível. Por não precisar mais estar lá. Por me ver livre. Livre. Livre mesmo! Pra andar na rua, tomar banho em chuveiros maravilhosos, comer coisas divinas, passear à noite, ver a cidade iluminada, tirar fotos do que eu quiser, conversar, gritar e dançar, rir e sorrir, escrever, cantar, comprar, dormir, sair, andar, telefonar, me informar, ler, ter amigos, conhecer pessoas novas, aprender, e até voar. Liberdade total. Até mesmo da tristeza de lá! Sou muito grata por ter vivido tudo isso... muito do que sou vem dessa época, principalmente o aprendizado da paciência, da tolerância, da eliminação do preconceito de qquer tipo, da vontade de ajudar sempre que possível, da vontade de aprender tudo e conhecer mais e mais coisas novas, da capacidade de aproveitar cada segundo da melhor forma. Angola me enriqueceu como nenhum outro lugar, mesmo que à custa de muito medo, solidão, desespero, susto, raiva, injustiça, choro, angústia, decepção, sofrimento, impotência, mal-estar, falta de liberdade. It was worthy. Pelo menos gosto de achar que sim :-)
<< Página inicial